O medo é uma experiência que acompanha todos os seres humanos, em alguma medida. Sentir medo em suas múltiplas escalas[1]– prudência, cautela, alarme, ansiedade, terror – é sentir-se fragilizado frente a algo que oferece risco, diante de alguma situação que pode ser perigosa. A vulnerabilidade pode nos quebrar e fazer sofrer. Pode doer.
Explorar o medo faz parte das estratégias adultas, desde sempre, para garantir que seus filhotes vinguem quando estes, sedentos e entusiasmados pelo mundo, não possuem limites para as suas explorações e podem colocar as próprias vidas em risco. Então nascem as histórias para fazer medo: o homem do saco, o bicho-papão, a bruxa malvada, o lobo mau, e por aí vai. São medos personificados.
Mas há outros medos também. Aqueles que podem surgir de experiências traumáticas como o medo de andar de bicicleta, em decorrência de uma queda, o medo de cachorro, por ter sido alvo de uma mordida, o medo de injeção, porque a picada foi doída.
E tem aqueles medos que a explicação não é tão simples e aí buscamos ajuda especializada para desvendar os motivos, como as fobias, por exemplo.
Seja como for, o medo parece nascer de uma sensação de desamparo, de falta de controle sobre alguma situação.
E aí estamos em 2020, com uma enorme crise sanitária. Quer maior descontrole sobre a vida do que uma pandemia global?
Nada mais está sob o controle e aí começam a emergir os medos de cada um e de todos nós. Porque até parecia que tínhamos algumas certezas, não é mesmo? Que agora são lavadas com água e sabão o tempo todo.
Quando nos sentimos desamparados, os monstros do medo crescem como nunca e rondam nossas casas, nossos sonhos e nossos pensamentos.
E se eu nunca mais encontrar com D. Maria?
Na minha idade não vou ter respirador.
Estou sem trabalho.
Vou enlouquecer se tiver que continuar isolada.
Não posso parar de trabalhar.
Estou com dor de cabeça. É Covid-19?
Sonhei que procurava uma porta que abria outra porta, que abria outra porta e que não chegava a lugar algum.
São muitos os medos. São muitos os medos dos adultos. Mas, e as crianças, do que elas têm medo?
Em um período pré pandemia, no ano de 2017, essa foi a pergunta da artista brasileira Rivane Neuenschwander para um grupo de aproximadamente 200 crianças de 06 a 13 anos, em um projeto artístico intitulado "O nome do medo". Desse projeto nasceu uma exposição e agora, em tempos de Covid-19, mobiliza nossa reflexão sobre os medos atuais das crianças e, também, os medos dos adultos.
Fonte:http://eavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2017/02/Nome.Medo_.Oficina03-16.jpg
O grupo de pesquisa Arteversa traz à tona a exposição de Rivane Neuenschwander e escreve a publicação Qual o nome do seu medo? com várias questões na intenção de abrir uma ou muitas conversas. E estamos aqui aceitando esse convite. A pergunta final desse texto do Arteversa, escrito por Karine Storck e Luciana G. Loponte, é:
O que você tem feito com seus próprios medos?
Sim. É essa a pergunta que ecoa. Não. Não há para onde fugir. Pára o planeta que eu quero descer não está no menu.
Há outras perguntas, anteriores, que são muito importantes.
Você consegue listar seus medos?
Cada um com sua listinha de medos individuais e agora todo o planeta com o medo coletivo. Pois todos nós podemos a qualquer momento ficar doentes e fazer parte da estatística daqueles que têm complicações em decorrência dos efeitos de contaminação do coronavírus.
Estamos à deriva do humano idealizado e agora em uma inevitável busca por estabelecer uma humanidade que nos faça sobreviver ao confinamento, que nos sustente às mudanças inexoráveis diante de um mundo que já não existe mais. A urgência é reinventar-se como humanos e humanidade.
Você consegue nomear seus medos?
Dar nome é dar identidade. Eu nomeio, logo reconheço. Talvez essa seja a questão mais importante para iniciar nossa conversa com a gente mesmo. Se entendermos o medo relacionado ao momento vivido, ao agora, ainda que possamos identificar medos antigos, o que nos afeta nesse exato momento? Que medos estamos sentindo? Que nomes têm os medos dos adultos? Que nomes têm os medos das crianças?
"Ao ler o relato desse projeto da Rivane fiquei pensando no medo, do que tenho medo... lembrei uma passagem da minha trajetória em que compreendi o medo nas palavras de um montanhista, Erwin Gröger, que faz parte da minha história. Ele dizia Só não tem medo os loucos e as crianças, se referindo à ação de subir a montanha sem considerar os riscos, de adentrar na mata, de fazer uma escalada exposta... A isso, acrescentava ele, se você entender o medo como um aliado, tudo muda, é o medo um sinal de alerta para dar um passo atrás, avaliar, rever, tomar a iniciativa de modo consciente dos riscos, dominando a situação e não se colocando refém dela. Isso mudou muito a minha vida. E, nesse momento, penso no medo por essa circunstância que me faz sentir mais consciência de mim mesma. Tentando nomear o medo que sinto no agora, me veio à mente a Impotência.” (Daniele Vieira, adulta)
“Mãe, vai demorar muito pra gente ficar velhinha e virar estrelinha, né? Você viu que essa criança (aponta para um desenho que acaba de fazer, uma menina cheia de pintinhas) está com varíola? É muito perigoso. O coronavírus não deixa a pessoa com pintinha”.
(L. K. D., 4 anos)
O medo de Daniele chama-se IMPOTÊNCIA. O nome do medo de L. talvez seja MORTE. Diferente da maioria dos adultos que consegue fazer o exercício de tentar nomear seus medos, as crianças pequenas sentem essa alteração de emoções e sentimentos, no entanto, grande parte das vezes, não conseguem dar nome ao que estão sentindo. O medo existe e é expressado de jeitos diversos: nas brincadeiras, na dificuldade de dormir, no sono agitado, no humor, nas conversas cotidianas, nos pedidos.
Afinal, não há como sair ileso da atual situação. As crianças estão sendo muito atingidas. Tudo mudou: não vão mais à escola, não devem brincar com os amigos, não se encontram com familiares queridos que estavam acostumados a ver. Não há mais passeios, nem pipoca na feira, tampouco tomar sol no parquinho. Algumas não são poupadas dos noticiários, dos atritos entre os adultos, dos problemas financeiros decorrentes da quarentena, do desconforto de espaços apertados, da falta de compreensão de sua necessidade de brincadeiras, da violência doméstica que assola sobretudo mulheres e crianças. Qualquer que seja o cenário cotidiano das crianças em tempos de pandemia, ele aciona algum ou alguns medos.
Dessa experiência coletiva que a pandemia nos impõe – distanciamento social, quarentena, isolamento - sobram incertezas acerca do mundo que estamos vivendo, pois aquele onde vivíamos até ontem se mostra a cada dia mais distante. E agora? Que mundo é esse que está nascendo? Do que estamos nos despedindo?
Frente a tudo isso, parece-nos fundamental marcar três movimentos: abrir espaço para ter direito a sentir e expressar medo e sofrer os lutos, inspirar a vivência do presente, mobilizar a esperança. Nós, do Narrativas Educacionais, queremos colocar esses assuntos nas rodas das conversas e estamos iniciando uma série de publicações.
O que esse texto faz você pensar? Qual é o nome do seu medo? Quais são os nomes dos medos de suas crianças? Queremos saber! Conta pra gente! Pode ser escrita, vídeo, desenho, música, e o que mais você quiser.
Por Larissa K. Kautzmann, Daniele M. Vieira, Maria Carmen. S. Barbosa, em 19 de abril de 2020. E-mail: narrativaseducacionais@gmail.com
[1] Para saber mais veja DALGALARRONDO, Paulo.
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