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Foto do escritorEquipe Narrativas

Situar-se no presente, o agora

Abro os olhos pela manhã e escuto o silêncio do dia, a luz entrando pelas frestas da persiana me anuncia que já são 5 e tanto... Antes do despertador, é o meu relógio interno que me acorda do sono profundo.

Tenho facilidade para rotinas, aprendi a gostar de certas características que me enquadram como virginiana típica: exigente, perfeccionista, persistente, crítica, metódica. Foi aos 36 anos, quando fiz meu mapa astral que me encontrei comigo mesma pela primeira vez, descobri que não eram defeitos, como muitos não pouparam em me fazer acreditar, mas uma vantagem, se soubesse reconhecer nelas traços inegáveis ao meu modo de ser, coordenadas que me situam no mundo, calibram meu olhar e delineiam perspectivas com as quais tenho me lançado nas diferentes dimensões da vida.

Desse encontro generoso com minhas particularidades, me fiz mais assertiva no cotidiano, por usufruir dessa facilidade para estruturar o dia como uma sucessão de momentos esperados, reconfortantes, nutritivos, meu equilíbrio.

Idiossincrasia inexorável?

Equilíbrio não é homogeneidade de forças, mas composição de elementos que se enredam, dão forma e consolidam estabilidade.

Nessa aparente harmonia, é a capacidade reflexiva ou o acaso, pontos de inflexão do equilíbrio, que me fazem confrontar com a impermanência das coisas. Seria, então, o equilíbrio uma ilusão necessária como sentido de segurança à revelia das variáveis incontestáveis desse mundo complexo e que ainda me causa espanto?

Ao final dos quarenta e adentrando os cinquenta... me vi ressignificando o equilíbrio, de algo controlável para aquilo que me abre infinitas possibilidades de Ser Mais, advindo da característica do inacabamento que Paulo Freire nos fala sobre homens e mulheres poderem se reinventar sempre a cada momento. Me situo vivendo, sem tempo para ensaiar. Crio o meu próprio sentido do viver, com uma ritualística cotidiana, estruturante e alentadora da decisão sobre meus atos, a recorrência por opção, o enfrentamento da realidade com tudo o que vier, mas também a abertura à possibilidade de que algo novo possa me surpreender.

Levantar da cama, usar o banheiro, ocupar a cozinha lavando a louça que sobrou na pia, preparar o café da manhã, beber água com limão, fazer panquecas de aveia, esquentar a água e passar o café, cortar a fruta, sentar e ler as notícias [e agora] “ouvir lives”, acender uma vela para iluminar desejos... são ações que já há algum tempo me estruturam, de certa forma condicionam gestos conhecidos e liberam o pensamento, é como me calibro para iniciar o dia. Nessa sequência conhecida e condicionada, me vejo recapitulando temas que circundam minhas reflexões, imagens de lugares e vivências em outros tempos guardadas na memória escapam e trazem colorido às sensações que essas ações diárias e repetitivas parecem acionar. Me organizo, antevejo prioridades, estabeleço um acordo e gerência da pauta do dia.

Nas primeiras semanas do distanciamento social (Covid-19), ao realizar minha ritualística cotidiana percebi um vácuo causado pela ausência do mundo lá fora na cadência das ações possíveis e cabíveis.

O ponto de inflexão se conforma em viver o presente.

Percebi que antes, ao realizar cada gesto e ação da ritualística cotidiana, meus pensamentos me carregavam para outros tempos, conduzida por lembranças ou movida pela sobreposição de urgências, as prioridades e o controle das minhas responsabilidades me guiavam, de certo modo, me distanciavam de estar inteira na gestualidade e na intencionalidade.

A suspensão do mundo conhecido, da sociabilidade, do encontro, da dinâmica de trabalho entrelaçada de outros, produziu esse vazio que percebo como consciência de um presente apenas habitado de “agoras”. O que quero fazer agora? Nesse momento, do presente por ele mesmo? Se o agora é um continuum de possibilidades que escolhemos reiterar, revisar, reinventar, somos feitos cotidianamente de “agoras” como oportunidades.

Munida de mim mesma, me vejo buscando em minhas particularidades recursos para alimentar o presente de sentidos. Confronto o vazio aparente, reencontro desejos, interesses, habilidades, tempos vividos e guardados, esquecidos, agora... reacendidos.

Nesse encontro comigo mesma, com minha história, os caminhos percorridos me fazem reviver minha potência, dou espaço à nostalgia, e a trajetória indelével me faz lembrar a humanidade que persiste em mim. É nesse ínterim que a lucidez diante do tempo kairós, o agora sem o qual não há vida no presente e, portanto, nem futuro, condição inevitável que escancara o viver como um compêndio de incertezas, de impermanências, mas também de possibilidades. Nessa confluência de pensares, sentires, desejares, projetares, me vejo acometida de sentimentos, e o medo da impotência sobre uma verdade irremediável, o futuro é mesmo um desconhecido a se inventar.

Me lembro de respirar. Cresce em mim a consciência de que sou um Ser que respira, e isso faz com que a Respiração seja uma oportunidade a exercitar, de deixar chegar pelo pensamento, como ato meditativo, o presente vivo nos gestos e na intencionalidade primeva da ação. Fortalece em mim a possibilidade de construir sentidos conectados com a existência, a minha existência entrelaçada e relacionada com outras existências. Me transporto a lugares onde minha existência, onde me sinto inteira e o pensamento se torna essa lacuna onde tudo pode acontecer, imaginação ou rememoração? Logo estou no cume da montanha.

O presente se corporifica na presença que escolho hoje viver e ser.

Conhecer e reconhecer a mim mesma um dia de cada vez.



Por Daniele Marques Vieira

Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação

Consultora do Narrativas Educacionais



Foto: Daniele Vieira

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