Queridas e queridos colegas da Educação Infantil, familiares das crianças, comunidade em geral,
Hoje completo 39 dias de quarentena, como, muito provavelmente, a maioria de vocês. Tenho saído excepcionalmente para abastecer a casa de comida, fazer pagamentos e sacar dinheiro, pois ainda não me sinto à vontade para lidar com o aplicativo do banco, sob vaias e protestos de amigos e familiares: - Ainda mais numa situação como essa!, me dizem indignados.
Estar há tanto tempo em casa e por tempo indefinido, é para mim uma experiência única, seja pelo fato em si, seja pelo que provoca de reflexões, alteração na rotina, nos hábitos, no uso do tempo. Moro só, convivendo com os benefícios e as faltas dessa condição. Ao final desse período, reconheço uma trilha no pedaço da casa pelo qual me desloco – um apartamento no segundo andar de um prédio dos anos 1960, com sacada pra rua – , reconheço também um mundo estranho e familiar, faces da mesma moeda, que resolvi traduzir em palavras e, agora, compartilhar com vocês.
Refletir e escrever sobre a minha casa, sobre as casas em que já vivi e sobre as que conheço me possibilitou uma nova maneira de estar em casa, de me sentir em casa, de me fazer casa e de abrir a porta de casa para receber meus amigos e familiares pela câmera do whattsapp, no celular. Sem sair de casa, interdito, responsável e zeloso, a escrita e a leitura desse texto sobre casa é um convite pra puxar a cadeira e sentar para conversar.
Casa
Onde você se sente em casa?
Uma quarentena inteira para fazer da sua casa esse lugar
Uma quarentena inteira para fazer do (seu) mundo esse lugar
Encontrar uma casa não é tarefa das mais simples. Não estou me referindo necessariamente a alugar ou comprar um imóvel. Penso na ideia de casa. Melhor dizendo, no sentimento de casa. Casa é...? Encontrar esse sentimento pode levar tempo e se revelar muito longe da casa onde nascemos, quando, enfim, montamos a nossa própria casa, sozinhos, ou com amigos, ou com o nosso amor, ou até mesmo quando visitamos a casa de alguém. Não é raro ouvir das pessoas que se sentem muito mais em casa na casa de tios, avós, amigos do que na sua própria, seja morando sozinho ou com alguém. O que está na base desse sentimento? O que em nós é tocado pela casa do outro que nos faz sentir em casa, como se fosse nossa também? Quando reconhecemos esse sentimento na nossa própria casa? E por que não o sentimos, se é a nossa casa, afinal? Parece que casa tem a ver com o endereço de um sentimento.
Estrangeiro, forasteiro, estranho, de fora, transeunte, turista, viajante, passageiro, hóspede, visita, são palavras que parecem remeter ao oposto de casa que, por sua vez, se alinha a palavras como familiar, usual, integrante, habitante, residente, morador, nativo, originário, original, orgânico, natural.
Casa é um espaço e a relação com esse espaço, é limite, contorno, fronteira, demarcação. Casa é composição, projeção, intencionalidade, organização, funcionalidade, gosto, preferência, escolha, seleção, prioridade, hierarquia, princípio, critério, acordo, uso, ensaio, teste, prova, narrativas, memórias, pessoas, funcionamentos, performances, rotinas – (auto)formação, (auto)constituição. Casa é uma assinatura dinâmica, uma autoria complexa a muitas mãos. Casa habitada não é mais só um espaço, é um lugar onde se anda descalço, distraído, sem senha para os pensamentos e devaneios, onde se cria solto o coração.
Em tempos de isolamento social, em decorrência da pandemia pelo coronavírus, voltamos à casa, não mais ao fim do dia, como antes, mas ao tempo da convivência com o que dela fizemos ou deixamos de fazer. E vamos descobrindo que a nossa relação com a nossa morada era quase de passageiros, turistas, ocupando-a poucas horas por dia, para guardar a bagagem, tomar banho, mudar de roupa, dormir e até pedir ou levar comida pronta da rua, como hóspedes exaustos de um hotel – uma relação à base de pouca vigília e pouca dedicação. Ao contrário, casa é cenário, testemunha, guardadora de memórias de quem nela sonha e se prepara para ganhar a rua, o sonho, o pão. Se é casa com crianças, tem ladainha, barulho, confusão – banho, comida, conversa, brincadeira, choro, risada, história, sono, tema de casa, agenda da escola, mochila, roupa e lanche pro dia seguinte, pode, não pode, só depois que guardar os brinquedos, faz as pazes com teu irmão, chega de celular, fala com a tua mãe, fala com o teu pai, aqui é a nossa casa e não a casa do fulano, quem tira a mesa hoje? que filme é esse que você está vendo? e nesse fíndi, o que é que a gente pode fazer?... Casa é aquela horinha das redes sociais, da paquera, da sedução, do namoro, do sexo e de discutir a relação – pra quem já tem e pra quem está procurando alguém com quem ser par. Casa é aquele momento sozinho, pra ver a novela, o futebol, mais um episódio da série, cortar as unhas, retomar o crochê, a leitura, não fazer nada, correndo o risco de pegar no sono sem escovar os dentes e acordar no dia seguinte com o despertador...
Penso sobre casa e me pergunto se os profissionais e os alunos das escolas de Educação Infantil se sentem em casa, no tempo extenso que passam por lá. Há lugar no planejamento dos professores para os pés descalços, para os devaneios e pensamentos imperfeitos, para o suor e as bochechas vermelhas pelas correrias do coração? Há lugar para o silêncio e a contemplação; para a possibilidade de não querer fazer nada em algum momento do dia, de não fazer tudo com todo o grupo na mesma hora e local? Há lugar para a composição das salas referência dos grupos com coisas que as crianças queiram trazer de casa, espontaneamente ou por sugestão da professora – uma planta, um búzio, uma pedra, uma estampa, um bibelô –, algo que seja significativo a elas, que elas queiram levar e deixar lá, como parte de uma assinatura coletiva, para tornar a sala um pouco mais delas e, quem sabe, se sentirem um pouco mais em casa, tão diversa, populosa e regulada é a vida lá? Escola não é casa, professora não é tia, mãe ou avó; é uma trabalhadora, uma profissional da área da Educação. Mas a escola é uma instituição onde muitas crianças – e suas famílias e seus profissionais – se sentem em casa, por mais que seja estrangeira, passageira, superpovoada de diferenças, antagonismos, conflitos, resistências a convivência nesse lugar. Se sentir em casa na escola é a maior prova de que as relações entre os sujeitos, os saberes e o conhecimento – sobre si e o mundo – vão muito bem nesse lugar.
Pelo noticiário ficamos sabendo que aumentaram os casos de violência doméstica durante a quarentena – discussões e brigas entre casais e entre vizinhos, agressões físicas entre adultos e dos adultos com as crianças, até óbitos. Casa é também lugar de enfrentamento das nossas escolhas, beco sem saída e sem descanso, de olhar nos olhos do real que sobrou dos nossos sonhos, arena, cativeiro, medo, desamparo, solidão.
Hora dessas a quarentena vai acabar. Para alguns será salvação, alforria; para outros, hora de sair do ninho, do aconchego do lar doce lar. Para alguns será hora de colocar em prática o resultado do balanço e das reflexões que só um fenômeno como a quarentena pôde proporcionar. Para outros, mais do que nunca, hora de encontrar, definitivamente, um lugar para chamar de seu. Eu tenho um sonho, já faz algum tempo, cada vez mais ele se atualiza e, felizmente, se realiza também – o de me sentir em casa mundo afora, onde quer que eu esteja, onde quer que eu vá. Já morei em muitas casas e cidades, por escolha dos meus pais, minha e em consonância com quem já fui par. Casa é berço, cheiro de comida se aprontando, fruteira cheia, mesa posta, gato, cachorro, planta, hora de sair e de chegar. Casa é promessa, cuidado, confiança, intimidade, revelação, trabalho, economia, financiamento, esperança, coração partido, doença, luto, inventário, partilha, herança, escritura, mudança, reforma, recomeço, choro, soluço, solução. Casa é um mundo inteiro em alguns metros quadrados. Casa é um ponto quando não se avista número, é destino, luz acesa, chaleira chiando, lixo, faxina, louça pra lavar, armário pra arrumar, mancha no sofá, vazamento pra reparar.
Sempre quando viajo é um desafio decidir o que levar na mala-casa longe de casa. Parece que estou sempre pronto para partir para casa.
Gosto da sensação de casa que chega num abraço. Casa pode ser o que se junta com um abraço.
Casa pode ser quem se ama, pode ser uma cidade inteira, um país, o amuleto que se carrega na carteira, o batom, o fio dental.
Casa pode ser um calçado, um perfume, uma roupa, a música do fone de ouvido enquanto corre ou caminha ou a que põe pra tocar quando chega em casa, para relaxar ou dançar.
Casa pode ser o assovio e o som dos passos apressados dos sapatos do seu pai, a tosse seca e o silêncio vigilante da sua mãe, a batida na porta do banheiro, vai demorar? O estrondo matinal da sua irmã assoando o nariz na pia, a traição ou a jactância da flatulência no meio da sala de estar...
Casa pode ser...
Eu
Casa pode ser...
Você
Oh, de casa! Tem alguém aí?
Por Gabriel de Andrade Junqueira Filho
Pedagogo, Mestre e Doutor em Educação pela PUC-SP
Professor da Faculdade de Educação da UFRGS
Área de Educação Infantil
Colaborador convidado do Narrativas Educacionais.
Fotos: João Urban (casa polaca, interior do PR), Victor Moriyama (Edifício Copan, São Paulo, 2020), Antonio Augusto Fontes (Santa Ceia, 1983), Wilson Martins (Imigrantes venezuelanos. Diário de Caratinga)
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